Texto e fotos: Eliane Camolesi*
– De repente, transformou minha vida. Eu plantei em 2022, fiz duas toneladas de algodão e lucrei R$13 mil. Com o feijão, a fava e o milho nunca tinha feito esse dinheiro. Comprei uma moto e comecei a reforma da minha casa com o que ganhei. Antes só dava pra comer e guardar um pouco dos legumes, pra ir vendendo, pra ir comendo.
Josefa Maria dos Santos, a dona Fiinha, tem a pele queimada pelo sol do sertão paraibano. Nesta época do ano, trabalha 8 horas por dia na terra, com as costas curvadas em “C”, para colher o algodão orgânico, plantado por ela na pequena Ingá, a cerca de 100 quilômetros de João Pessoa.
– Minha casa precisava de uma reforma. Muitas vezes das paredes da sala, que é de tijolo, cai muita areia. Agora comprei a cerâmica, botei na casa todinha. Tô achando uma maravilha. Quando digo que o algodão é o ouro branco dos agricultores, ele é. Além disso a gente trabalha em equipe. Vários jovens que estavam saindo pra fora estão começando a plantar algodão também. A gente tinha 6 mulheres em 2022, hoje tem 17 mulheres plantando o algodão. Mudou muito a vida de nós todas.
Com essa simplicidade, ela resume um trabalho complexo que está sendo feito aos poucos, o cultivo do algodão livre de agrotóxicos e de tingimentos industriais, e do algodão que já nasce colorido, num tom de terra típico do nordeste brasileiro.
Conheci isso tudo no Dia da Colheita em Ingá Paraíba, no fim de outubro, a convite da Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Serviços e Educação para a Moda Sustentável – ABRIMOS. (Eliane Camolesi)
Naquele sertão agreste, com sol escaldante e o vento levantando a poeira da roça, foi uma celebração pela força e persistência de um projeto que está devolvendo a dignidade aos agricultores familiares e quilombolas, numa terra que há 40 anos está limpa, livre do veneno despejado quase sem critério para tentar dizimar a praga do Bicudo, que na região nordeste entrou primeiro por Ingá e depois se espalhou por todo território na década de 1980. Foi o golpe mortal numa cultura que teve seu apogeu nos séculos XVIII, XIX e começo do XX, para terminar deixando agricultores na miséria, proprietários endividados, corações e almas sem esperança.
Um momento histórico vivido na pele, quando ainda jovem, pela empresária Francisca Vieira, que viu o pai fazendeiro falir, mas ainda assim distribuir comida para famílias que não tinham sequer o leite para dar aos filhos. Aquele passado a fez arregaçar as mangas e acreditar no novo momento, contrariando todas as probabilidades: é possível plantar algodão orgânico, algodão colorido, e vender essa produção inclusive para o exterior. Foi e continua sendo chamada de louca, o que ela adora. Francisca uniu o faro de empresária ao talento para fazer as conexões certas: poder público, instituições de pesquisa como Embrapa e Empaer, instituições de fomento ao empreendedorismo, como Sebrae, Senai e Banco do Brasil, e sobretudo empresários que também acreditaram na possibilidade de uma cadeia têxtil mais sustentável desde a base, sem poluir o meio ambiente, pagando um preço justo, garantindo a compra da safra, um dos pilares desde que o projeto nasceu, desde com venda também garantida para os mercados interno e externo.
Diante do trauma deixado pelo Bicudo, nem os lavradores nem a indústria têxtil acreditavam que seria possível plantar e ainda controlar as pragar sem uso de defensivos, já que o Bicudo não foi erradicado. Francisca conta qual foi seu pulo do gato:
– Eu cheguei e fui falar do jeito deles. Como eu sou filha de agricultor, convivi com eles a vida inteira e sei essa linguagem do campo. Pedi pra eles plantarem “uma bolinha”, “dois quadros”, que são pequenas porções de terra, eles entendem o que é. Quando é no final do ano você já consegue 2 mil, 3 mil quilos de algodão, já dá pra fiar, já dá pra tecer. Foi assim que a gente começou, subindo serra, descendo serra. Chamei Armando (Dantas Filho, CEO da Santa Luzia Redes e Decorações), meu parceiro, pra usar o que eu não usasse, começamos a desenvolver os produtos e hoje são, graças a Deus, dois cases de sucesso que exportam.
Dizem que louco atrai louco… o trio ficou completo quando Roberto Soares, CEO da Texpar / Grupo Unitex Têxtil, viabilizou a fiação do algodão naquele início ainda incerto.
Hoje, quem compra é capaz de entender o valor desse produto, que chega carregado de histórias pelas mãos das artesãs dos bordados e técnicas ancestrais recuperados. Aliada ao design, a costura dessas práticas e saberes levou a marca de Francisca, a Natural Cotton Color, a desfilar na Semana de Moda de Milão.
Antes do projeto, que no Ingá tem só 3 anos, mas já soma outros 17 em núcleos espalhados pela Paraíba, Wanderléa Bento da Silva plantava milho, feijão, fava, abóbora, que davam apenas para a subsistência. Criada na roça, filha de pais também lavradores, aprendeu o trabalhar com o algodão sem uso de defensivos e olha para o futuro:
– A gente colhe e já tem a empresa certa pra comprar o algodão. Faz um ano que comecei. Tenho dois filhos, vivia preocupada porque é muito difícil hoje em dia a gente conseguir criar uma família. Mas olha a boniteza agora, a gente fica muito mais tranquilidade. Já tenho 52 anos, mas o que tô aprendendo vou passar pro meu filho. Não é uma alegria imensa?
Conhecer os conceitos que envolvem a sigla ESG, os conceitos que envolvem os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas, nos dão um norte para o caminho que pode trazer uma mudança econômica, social, ambiental. Mas ver acontecer é que faz toda a diferença. As sustentabilidades, no plural, que são abraçadas pelas empresas que se pretendem longevas, saudáveis, viáveis economicamente e, não menos importante, curadoras de pessoas e do planeta, podem até ser uma utopia, mas na Paraíba elas agora se apoiam em bases estruturadas e acenam para uma mudança possível no paradigma do capitalismo. Outra conquista bem recente ali no Ingá é uma máquina de beneficiamento do algodão, que retira sementes e deixa somente a pluma, o que aumenta em três vezes o preço do algodão e agiliza em horas o trabalho que demoraria meses. Foi com a parceria dos jovens CEOs de duas outras pontas dessa cadeia, as empresas Dalila têxtil e Cia. Industrial Cataguases, que essa usina foi possível. Eles entenderam que o projeto é muito mais do que do que plantar-colher-vender-exportar:
– Esse projeto começou muito com o olhar de associar nossa marca à sustentabilidade – diz Thiago Peixoto, CEO da Cataguases. Também começou com viés de negócio, claro que pra ser sustentável no longo prazo precisa da ponta do negócio, do comercial, mas a gente deslocou esse eixo pro social. A gente tem que fazer essa transformação aqui. Estar aqui é emocionante, conhecer a realidade deles, não tem como não se sentir impactado. Isso faz com que a gente, como empresa, como empresário, como pessoa, queira se engajar.
André Klein, CEO da Dalila Têxtil, diz que a grande virada de chave é o contrato de compra garantida, o que elimina a incerteza de onde mandar o algodão e a que preço vender.
– Quando a gente começou a fazer essa planilha aberta, pagar preço justo, fazer a organização e gestão da cooperativa, ajudar em todos os detalhes, a confiança foi sendo construída e ampliada. A gente falava o tempo inteiro pra eles: plantem algodão e vamos fazer esse processo juntos, porque nós temos os canais de escoamento e as possibilidades de fazer o algodão de vocês chegar em todas as partes do mundo. Hoje, a Dalila faz 500, 600 toneladas de malha por mês. A Cataguases também faz tecido plano na mesma proporção que nós. Então, temos uma capacidade de venda, de gestão dessas possibilidades, muito ampliada. É o que está fazendo a gente ter essa possibilidade de criar uma escala exponencial para o futuro, inclusive.
André também estava no Dia da Colheita em Ingá, com a esposa, os pais, o casal de filhos ainda pequenos, com não mais que 10 anos de idade, uma presença que sinaliza a continuidade desse trabalho, que olha para as futuras gerações. A de seus filhos, a dos filhos dos agricultores, filhos dessa terra paraibana. O próximo passo, que já está sendo dado, é conseguir a certificação internacional GOTS, exigida por grandes marcas como Gucci, Louis Vuitton, Ives Saint Laurent, para a compra do algodão orgânico.
Mas se estamos falando de SustentabilidadeS, Francisca Vieira reforça um ponto absolutamente crucial nesta trama: o resgate da autoestima das mulheres sertanejas, fazendo do trabalho manual o grande aliado da moda sustentável. Ela desenvolve peças com renda, crochê e o labirinto, que cerca de 10 anos atrás era uma tipologia considerada morta, ninguém mais fazia. Francisca encontrou uma situação em que as artesãs eram exploradas, mal pagas, obrigadas a trocar o trabalho artesanal por produtos, e mudou essa dinâmica. Introduziu inovações na produção e, em vez de pagar por peça, passou a pagar por hora de trabalho, o que trouxe mais renda e dignidade às artesãs, agora capacitadas, reconhecidas, valorizadas financeiramente. E para ilustrar, Francisca conta essa história:
– Um dia, um grupo de empresas que trabalha com renda renascença chegou para uma artesã que trabalha comigo há 20 anos, dona Marlene. Disseram: “Essa é a nossa rendeira da Paraiba”. Ela respondeu: “Não. Meu nome é Marlene Leopoldino, rendeira mestre, premiada pelo Instituto Brasileiro do Patrimônio Histórico (IPHAN) . E se precisar de mim e da minha comunidade, eu tô aqui.”
Em Ingá, esse orgulho e esse trabalho construídos a tantas mãos desfilaram ao entardecer, sob o sol poente do sertão da Paraíba, diante de uma plateia extasiada de empresários, jornalistas, compradores, diferentes atores desse processo. A cadeia da moda, uma das maiores poluidoras do mundo, mostra que é possível ser sustentável e “curar, em vez de contribuir para o sofrimento do mundo”, como diz Raj Sisodia, o indiano que é talvez o mais conhecido entre os criadores do conceito de Capitalismo Consciente.
*A jornalista viajou para o Dia da Colheita em Ingá (PB) a convite da Abrimos.